Mulheres trans também precisam se prevenir contra o câncer de mama

Após tratamento hormonal, o risco delas sofrerem com a doença em comparação aos homens cisgênero é 46 vezes maior

Os seios têm centralidade no que diz respeito à diferenciação entre os corpos femininos e masculinos. Sutiãs de tamanhos grandes ou PP sustentam o peso dos padrões de normalidade, de gênero e de sexualidade de uma mulher – seja ela cisgênero (que se identifica com o mesmo sexo o qual foi atribuído no nascimento) ou transgênero (que teve o sexo masculino atribuído ao nascimento, mas tem a identidade de gênero feminina). “Para muitas de nós, sim, quando começamos nos hormonizar, brincamos umas com as outras quando ‘já está crescendo peitinho’. Por que, querendo ou não, nossa subjetividade não importa para quem nos vê na rua. Atingir um padrão de um corpo ‘quase cis’, é desejo de muitas”, conta Wand Albuquerque, educadora física pós graduada em dança, de São Luis, Maranhão. “Mesmo que a questão de ter seios não me atravesse, outras questões, como pêlos, sim, me causam disforia.”

Enquanto no mês de outubro as campanhas de combate ao câncer de mama se tornam unipresentes, o foco sempre é em mulheres cisgênero. O risco para elas é, de fato, maior. Entretanto, a partir do momento em que mulheres trans são expostas a hormonioterapia, explica Isabela Minozzi Escudeiro, mastologista do Hospital 9 de Julho, de São Paulo, que complementa: “o risco vitalício de desenvolver câncer de mama é de 2% a 3%. Porém, vale ressaltar que a dose e o tempo de exposição à terapia hormonal aumentam esse risco. E assim como em mulheres cis, devemos olhar outros fatores, como antecedentes familiares de câncer de mama e o risco de mutação genética para individualizar o acompanhamento.”

Um estudo publicado no The BMJ – uma das mais influentes e conceituadas publicações sobre medicina no mundo – verificou um risco aumentado de câncer de mama para a população trans feminina. Em mulheres transexuais que fizeram uso de tratamento hormonal (por, em média, 18 anos), o risco é 46 vezes maior do que em homens cisgênero, que tem menos de 1% de chances de serem acometidos pela doença. “Este não é um estudo definitivo, até porque, infelizmente, há poucos estudos dedicados à saúde dessa população – que de forma alguma é pequena, mas ainda sofre com os preconceitos e estigmas sociais –, mas é um norte”, comenta Glauber Leitão, Chefe da Unidade de Oncologia e Hematologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco. “Quando se faz a estrogenioterapia é preciso controlar os níveis de hormônio, estrogênio e testosterona, circulantes no sangue e organismo do paciente. E sem acompanhamento não é possível ajustar a dose hormonal ideal. Além da avaliação do colesterol e glicemia”, explica Escudeiro.

O estudo mencionado foi realizado pela University Medical Centre de Amsterdã, na Holanda, e na conclusão do estudo, os pesquisadores apontam algumas limitações, incluindo dados ausentes ou incompletos sobre o tipo de uso de hormônio, histórico familiar, mutações genéticas, ou uso de tabaco e álcool. A questão é que muitas iniciam o processo de hormonização por conta própria. Conseguir os medicamentos, que se assemelham a terapia de reposição hormonal usada em mulheres cisgênero na menopausa, não é tarefa difícil. Complicado mesmo é o acesso aos programas de tratamento e apoio a essa população, que enfrenta a burocracia dos ambulatórios especializados, ligados a universidades e ao Sistema Único de Saúde.

E as barreiras para procurar os ambulatórios especializados são diversas: 1) financeira, para se deslocar até as capitais que realizam o atendimento; 2) a demora no agendamento das triagens e exames; 3) a falta de preparo de profissionais que deslizam em cuidados primários, como o respeito aos nomes sociais.

O exame de toque, basta?

“Eu continuo fazendo o tratamento hormonal, que aqui no Maranhão oferece um acesso mais fácil tanto a hormonioterapia quanto a cirurgia de silicone, pelo SUS. A prevenção contra o câncer é uma questão para mim. Eu já tive uma fístula na mama e recentemente estive bem preocupada com uma dor na axila e bateu um desespero”, conta Wand, que faz o tratamento hormonal há 1 ano e 3 meses. Mesmo sem casos na família, Wand que hoje atua como produtora cultural e performer, não hesitou em procurar atendimento médico. “No caso de mulheres trans, o autoexame não basta. Enquanto método de conhecer o próprio corpo e reconhecer sinais, é válido, mas não como uma medida médica. Não exclui uma avaliação especializada”, explica Leitão.

Isso porque a terapia hormonal apresenta contraindicações, como doença cardiovascular isquêmica, câncer estrogênio-dependente, doença hepática grave, antecedente pessoal de trombose e hipersensibilidade aos componentes das formulações.

Sabemos que a população transgênero vivencia diariamente o preconceito e luta contra a exclusão social, quando não, da própria família. Justamente, por todo esse contexto, precisamos reiterar o alerta. “É importante ressaltar que a mulher trans precisa de acompanhamento individualizado para receber a melhor forma de hormonioterapia e prevenir complicações, tal qual o câncer de mama”, diz Escudeiro. Por isso: mulheres trans, não hesitem em procurar ambulatórios de acolhimento médico e psicológico do Sistema Único de Saúde da sua cidade.

por Juliana Vaz – VOGUE